A guerra pela Europa não andava fácil com balas e bombas pipocando por todos os lados. Àquelas alturas, Hitler já tinha mandado fazer o Fusca, Hermann Göring ordenara o aumento das indústrias de guerra e Joseph Goebbels era cada vez mais obcecado no plano de transformar um genocida em homem do povo.
Pelas circunstâncias, o Brasil se achava alinhado ao bloco dos países Aliados que combatiam os países do Eixo, formado por países como Finlândia, Romênia, Bulgária e Hungria e dos apoiadores como o Estado Independente da Croácia, Eslováquia, Síria, San Marino, Marrocos, além, é claro, daqueles já conhecidos por alguns professores de História, como Alemanha, Itália e Japão.
Estamos em 1942 e as circunstâncias acima referidas foram quase todas de ordem econômica. Getúlio, o pai dos pobres e a mãe dos ricos, tinha um caso de amor por Adolf Hitler que já era amante do ditador italiano Benito Mussolini. Nosso complexo de vira-latas, tão bem destrinchado por Nelson Rodrigues numa analogia esportiva na Copa de 50, se ajusta ao servilismo da nossa política externa naquele momentos e em outros até piores ao longo da História.
Em muito se assemelhavam. Ambos tinham ascendido ao poder através de meios nada democráticos, não hesitavam em mandar matar seus amigos e tinham um passado medíocre no exército. Quanto a isso, e apenas nisso, brasileiros e alemães tinham muito em comum.
Mesmo sabendo do caso de amor entre os ditadores, mesmo temendo uma traição, Roosevelt, o presidente dos Estados Unidos, pediu Getúlio em casamento.
Apesar do nosso infeliz servilismo, nosso ditador não se fez fácil. Barganhou alto e como dote pela união improvável, o Brasil levou a CSN, Volta Redonda, milhões de dólares para financiar os seringais de borracha na Amazônia e enganar milhares de homens com a promessa de que seriam “Soldados da Borracha”. Com o cavalo-de-pau na política externa, sobrou para os integralistas plinianos que foram varridos para bem longe, para que Getúlio não tivesse uma recaída. Infelizmente, Plínio era Salgado e não apodreceu na História. Esse negócio de latino-americano se fantasiar de nazista não é de agora, não pegava bem, beira o ridículo, e imitação por imitação, prefiro Chaplin em “O Grande Ditador” (1940).
Estávamos a milhares de quilômetros do conflito, mas, como não poderia deixar de ser, e por tratar-se de uma Guerra Mundial, Cruzeiro do Sul, pelo seu protagonismo megalomaníaco, que por vezes chega a ser ridículo, não poderia ficar de fora. Também nós, daqui do meio do mato, declaramos guerra à Alemanha. Ainda bem que ela não ficou sabendo.
Se a declaração de guerra cruzeirense às forças do Eixo não passaria do Cais, a decisão do governo brasileiro causou um contratempo à Igreja Católica em Cruzeiro do Sul e em outras cidades Brasil afora. No Juruá, as obras católicas eram sustentadas administrativa e financeiramente pelos alemães. E, ou porque Hitler não permitisse dividir o esforço de guerra com a igreja, ou porque o dinheiro alemão não chegasse mesmo, desviado e apreendido que era pelas autoridades alfandegárias brasileiras, a Prelazia de Cruzeiro do Sul mergulhou numa das piores fases da sua história.
Desde muito que o cruzeirense emprenha pelos ouvidos. A vida alheia, o disse-me-disse e a calúnia não são coisas de agora. Assim, em plena Segunda Guerra Mundial (restrita quase que à Europa), as autoridades policiais e administrativas de Cruzeiro do Sul perderam o sono, vigilantes em relação aos poucos religiosos alemães aqui residentes, a maioria avançado em anos, inofensivos, inseridos já, cultural e até politicamente à comunidade juruaense. Mesmo assim, foram promovidos a terríveis e inomináveis “inimigos da pátria”.
A situação chegou a tal ponto que certa vez a Força Policial do Território do Acre tomou um navio de assalto no Cais de Cruzeiro do Sul.
Um ponto a mais ou a menos, dizem que altas horas da madrugada, sem que a sentinela o identificasse, um boateiro passou correndo na frente do quartel e disfarçando a voz, gritou bem alto, que o Contreiras tinha atracado ao Cais trazendo um canhão de guerra alemão para seus “soldados no Juruá”.
Foi um desarranjo com tempo limitado pela madrugada para por em prática o plano de chamada e recolher ao quartel todos os homens do destacamento.
Pela quase manhã, ainda escuro, o Contreiras envolto em cerração foi cercado como em operação de guerra, enquanto uma guarnição se dirigia à igreja para intimar o bispo e conduzi-lo sob custódia.
Ao toque do clarim a infantaria tinha armado baionetas e o barranco e as imediações do Cais foram tomadas por atiradores estrategicamente dispostos para o combate.
Sem resistência ou tiros, o navio foi tomado de assalto e seu comandante preso. As autoridades policiais e administrativas do Território comemoravam o feito militar, enquanto a multidão, de longe, sem tomar chegada para não correr riscos de se encontrar com uma bala perdida, observava com suspense as evoluções de combate.
Bem na proa, coberto (“disfarçado”, no entender das autoridades) com uma lona preta, o “terrível canhão de guerra”, o motivo de tanta apreensão.
Descoberto da lona, eis que surge enorme, tinindo, reluzente, mas tímida, acanhada, meio sem graça, uma máquina peladeira de arroz, adquirida no Rio de Janeiro para uma associação de trabalhadores rurais ligados à Prelazia. O primeiro equipamento do tipo a desembarcar por aqui.
* Antônio Franciney de Almeida Rocha é historiador e poeta.