O médico explicou que o alto número de casos de hepatites crônicas justifica a elevada quantidade de casos de cirrose e câncer de fígado no estado
O Maio Vermelho é uma campanha de conscientização que ocorre anualmente, com o objetivo de alertar a população sobre a importância da prevenção e do controle das hepatites virais. Para falar sobre o assunto, o ContilNet conversou com o infectologista Thor Dantas nesta sexta-feira (2).
O médico afirmou que o Acre tem a maior prevalência de hepatite C no Brasil — e isso se deve, principalmente, a cuidados médicos inadequados.
“O Acre tem a maior prevalência de hepatite C do Brasil. E hepatite C é uma doença geralmente associada aos grandes centros urbanos, porque é transmitida por injeções, procedimentos hospitalares feitos em condições inadequadas e, em países desenvolvidos, também pelo uso de drogas injetáveis. Espera-se que essa hepatite seja mais comum nos grandes centros do que no interior. Mas, curiosamente, em alguns locais menos desenvolvidos também há muita transmissão de hepatite C, associada justamente a cuidados de saúde inadequados. O Acre experimentou isso há 20, 30 anos: muito espalhamento da hepatite C associado ao uso de seringas de vidro que eram reutilizadas. Na época em que não havia seringas descartáveis, utilizavam-se seringas de vidro e agulhas reutilizadas, esterilizadas de forma inadequada”, explicou o especialista.
“Junto a isso, havia práticas em farmácias, nas próprias unidades de saúde, hospitais pequenos do interior, consultórios de dentista, e também em manicures, tatuagens e outros procedimentos associados à saúde, beleza e cuidados estéticos. Isso favoreceu uma grande transmissão da hepatite C no Acre num passado recente”, acrescentou.
Há cinco tipos de hepatite descritos pela literatura médica: A, B, C, D (Delta) e E.
Thor explicou ainda que a região amazônica tem registrado um alto índice de hepatite B e é o único lugar do Brasil onde a hepatite Delta — o tipo mais grave da doença — se manifesta.
“De fato, o Acre é o estado com a maior prevalência conhecida de hepatite C. A isso se somam outras duas hepatites virais crônicas: a B e a Delta. A B é muito comum em diversos lugares do mundo e do Brasil. Na região amazônica, há muitos casos. Somos uma região já conhecida por ter alta incidência de hepatite B. E a hepatite Delta é uma doença que só existe aqui — uma hepatite exclusiva, digamos assim, da região amazônica. Não existe fora do Brasil, nem fora da Amazônia. E é muito mais comum na Amazônia Ocidental: em Rondônia, no Acre e no oeste do Amazonas — Pauini, Heroteté, Boca do Acre. Essa região onde estamos é a que mais concentra casos de hepatite Delta na Amazônia, e a Amazônia concentra todos os casos de hepatite Delta do Brasil. Temos uma conjunção dessas três hepatites, cada uma com uma causa distinta”, destacou.
A hepatite D, também chamada Delta, é causada pelo vírus HDV. Esse vírus depende da presença da infecção pelo vírus HBV (hepatite B) para infectar o indivíduo. Existem duas formas de infecção pelo HDV: coinfecção simultânea com o HBV e superinfecção do HDV em pessoas com infecção crônica pelo HBV.
A coinfecção HBV-HDV é considerada a forma mais grave de hepatite viral, associada a uma maior ocorrência de cirrose, mesmo dentro de dois anos após a infecção, além do aumento da probabilidade de evolução para descompensação, carcinoma hepatocelular e morte.
Dantas explicou como se dá a transmissão de cada tipo de hepatite e destacou que a Delta tem maior prevalência no meio rural, entre indígenas e ribeirinhos:
“A hepatite C é transmitida por seringas. A hepatite B e a Delta têm transmissão mais familiar, dentro das casas. As pessoas adquirem na infância, ao nascer, pegando dos irmãos, da mãe. A Delta é mais comum na área rural, entre ribeirinhos e povos indígenas da Amazônia. Por uma conjunção de fatores, acabamos tendo muitos casos de hepatite B, C e Delta — as três hepatites que levam à cirrose e ao câncer de fígado”, salientou.
O médico explicou que o alto número de casos de hepatites crônicas justifica a elevada quantidade de casos de cirrose e câncer de fígado no estado.
“Existem ainda as hepatites A e E, mas essas são transmitidas por via oral, por alimentos contaminados, e não levam à cirrose ou ao câncer de fígado. Elas causam apenas hepatite aguda. As hepatites crônicas, que mais nos preocupam, explicam por que o Acre tem tanta cirrose e tanto câncer de fígado. Quando consultamos os dados do Instituto Nacional de Câncer, que mapeia os tipos de câncer em todo o Brasil, vemos que nós, aqui no oeste do Amazonas, somos os campeões em câncer de fígado — exatamente por causa das hepatites virais. Isso faz da nossa região um ponto quente do mundo. Eles chamam de hotspot um lugar onde o problema das hepatites é muito grave”, pontuou.
A transmissão das hepatites por relação sexual, especialmente a do tipo B, também é uma questão preocupante no cenário amazônico, segundo o infectologista.
“Das três hepatites, a B é altamente transmissível por via sexual. É a mais transmissível de todas. Na verdade, é mais transmissível por via sexual do que o próprio HIV. Por isso, sim, devemos considerar as hepatites virais também como ISTs, especialmente a hepatite B”, comentou.
Imunização
A imunização, de acordo com o médico, é uma excelente aliada no combate à hepatite B, mas a cobertura vacinal no Acre ainda é baixa.
“Uma característica diferente dessas três hepatites é a disponibilidade de vacina. A hepatite B tem vacina, mas a C e a Delta não. A hepatite B deveria ser uma doença eliminável se mantivéssemos uma alta taxa de cobertura vacinal. As pessoas precisam se vacinar para se livrar da hepatite B como doença sexualmente transmissível. Mas, sim, quem chega à adolescência sem ter sido vacinado na infância acaba se infectando com a hepatite B”, afirmou.
Thor trouxe uma informação importante: a vacinação contra a hepatite B deve ser feita ao nascer, “na primeira hora de vida”.
Percentual de bebês vacinados contra hepatite B é um dos menores da história/Foto: Reprodução
“A vacina da hepatite B deve ser aplicada em todos os recém-nascidos. E um aspecto crucial é que ela deve ser administrada na primeira hora de vida. Essa é a vacina mais importante ao nascer. Se o bebê sai da maternidade sem essa dose, corre o risco de se infectar no primeiro mês de vida, ao ter contato com a família. Como a hepatite B é muito transmitida dentro de casa, o dado mais importante de cobertura vacinal não é apenas ter as três doses na caderneta, mas garantir a aplicação da primeira dose ainda na maternidade. Essa é a dose mais importante da vida. Caso a criança entre em contato com o vírus antes de ser vacinada, a vacina já não surtirá efeito e ela levará a infecção para o resto da vida. Por isso, além da vacinação, é fundamental o diagnóstico durante o pré-natal para evitar a transmissão da mãe para o bebê. São as duas estratégias principais: vacina na primeira hora de vida e diagnóstico na gestante”, explicou.
Para a hepatite C, a estratégia é diferente: “Não há vacina. O ideal é fazer busca ativa em todos os que têm mais de 40 anos. Todos com mais de 40 anos no Acre deveriam fazer exame para hepatite C”, orientou.
Diagnóstico
“Geralmente, o diagnóstico é feito de forma tardia, por uma característica própria das hepatites. No mundo todo é assim, pois elas não causam sintomas. A pessoa pode estar evoluindo para cirrose ou câncer de fígado sem sentir nada durante anos. Quando os sintomas aparecem, o quadro já está avançado. Por isso o diagnóstico tende a ser tardio. Quem nasce em uma região de alta prevalência, como o Acre, deveria fazer testagem de hepatite pelo menos uma vez na vida”, defendeu.
O médico explicou como a testagem é feita:
“Hoje, o teste rápido pode ser feito com uma picada no dedo, em qualquer posto de saúde, inclusive no Acre. É possível descobrir na hora. Muitas pessoas descobrem quando vão fazer exames de rotina, como para concursos públicos ou check-up clínico. O médico vê alterações nos exames de fígado e pede a testagem para hepatites. Mas, se a pessoa não buscar esse diagnóstico ativamente, pode passar a vida inteira sem saber e desenvolver complicações graves. Por isso o Acre também realiza transplantes de fígado, devido à alta demanda de pacientes com cirrose e câncer hepático.”
Geralmente, o diagnóstico é feito de forma tardia, por uma característica própria das hepatites, disse o médico/Foto: Reprodução
Thor afirmou que a descoberta precoce da doença colabora para a qualidade de vida do paciente:
“Se a pessoa descobre a hepatite cedo, numa busca ativa, mesmo sem sentir nada, é possível ter qualidade de vida. É importante fazer o exame mesmo que não se considere em risco. Pode-se contrair hepatite em consultório odontológico, farmácia, manicure ou em casa, por contato com familiares. Ao descobrir cedo, antes da cirrose, é possível tratar, curar e evitar complicações futuras. Essa é a medida mais eficaz: identificar cedo quem tem hepatite para tratá-los antes que adoeçam gravemente.”
A busca ativa como estratégia
Para as hepatites que não são prevenidas com vacina, Thor defende que a busca ativa deve ser política pública prioritária no Acre:
“Todo paciente com qualquer doença crônica — diabetes, hipertensão, tireoide, colesterol alto — deveria ser testado para hepatite C na atenção básica. Fazendo essa busca ativa, rastreando a população, vamos descobrir quem tem hepatite C, tratar e curar essas pessoas. Hepatite C não tem vacina, então a estratégia é essa: busca ativa e tratamento precoce. Cada hepatite tem uma estratégia diferente. B, C e Delta são doenças distintas, com epidemiologia, formas de transmissão e tratamento próprios. Precisamos de um plano estadual de eliminação da hepatite C.”
O médico acredita que o Acre pode deixar de liderar os casos da doença para se tornar referência no combate às hepatites virais:
“O que tenho dito a todos, inclusive aos gestores da Secretaria de Saúde, é que podemos transformar nosso problema em exemplo. Estivemos há pouco tempo na cúpula global de hepatites, em Los Angeles, com representantes do mundo todo. Vimos o exemplo do Egito, que já foi o país com mais hepatite C no mundo e hoje é referência na eliminação. O Acre pode seguir esse caminho. Temos cinco anos para alcançar a meta global de eliminação da hepatite C até 2030. Para isso, precisamos de um plano estadual bem articulado com os municípios, que terão metas próprias dentro da atenção primária”, pontuou.
Hepatite Delta, a mais grave
Como a região amazônica é a única do Brasil a registrar casos de hepatite Delta, Thor alerta que é preciso levar o tratamento até quem vive em locais isolados. O tratamento da doença é mais rigoroso e invasivo.
“A hepatite Delta é a mais grave e desafiadora. Está presente na área rural, entre ribeirinhos e indígenas da Amazônia. O diagnóstico é difícil, e o tratamento ainda é feito com o velho interferon — injeções semanais com muitos efeitos colaterais, que precisam ser armazenadas em geladeira. É um desafio logístico e científico enorme tratar essas pessoas. Já existem medicamentos melhores no mundo, e precisamos lutar pela incorporação deles no SUS.”
“A Europa já utiliza esses novos medicamentos, e precisamos incorporá-los ao nosso sistema de saúde. Temos que montar estratégias para, junto com o programa Saúde Itinerante e os programas de saúde indígena, como o CASAI, realizar o diagnóstico e garantir o tratamento adequado para essas populações. Hepatite C pode ser eliminada. Hepatite B e Delta, controladas. Eliminação e controle andam juntos — e o Acre pode dar o exemplo”, finalizou.