Cruzeiro do Sul, Acre, 15 de maio de 2025 12:12

Campanha Maio Vermelho – Acre tem maior número de casos de hepatite C no Brasil; infectologista Dr. Thor Dantas explica os tipos e tratamentos

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O médico explicou que o alto número de casos de hepatites crônicas justifica a elevada quantidade de casos de cirrose e câncer de fígado no estado

O Maio Vermelho é uma campanha de conscientização que ocorre anualmente, com o objetivo de alertar a população sobre a importância da prevenção e do controle das hepatites virais. Para falar sobre o assunto, o ContilNet conversou com o infectologista Thor Dantas nesta sexta-feira (2).

O médico afirmou que o Acre tem a maior prevalência de hepatite C no Brasil — e isso se deve, principalmente, a cuidados médicos inadequados.

Thor Dantas é infectologista/Foto: ascom

“O Acre tem a maior prevalência de hepatite C do Brasil. E hepatite C é uma doença geralmente associada aos grandes centros urbanos, porque é transmitida por injeções, procedimentos hospitalares feitos em condições inadequadas e, em países desenvolvidos, também pelo uso de drogas injetáveis. Espera-se que essa hepatite seja mais comum nos grandes centros do que no interior. Mas, curiosamente, em alguns locais menos desenvolvidos também há muita transmissão de hepatite C, associada justamente a cuidados de saúde inadequados. O Acre experimentou isso há 20, 30 anos: muito espalhamento da hepatite C associado ao uso de seringas de vidro que eram reutilizadas. Na época em que não havia seringas descartáveis, utilizavam-se seringas de vidro e agulhas reutilizadas, esterilizadas de forma inadequada”, explicou o especialista.

“Junto a isso, havia práticas em farmácias, nas próprias unidades de saúde, hospitais pequenos do interior, consultórios de dentista, e também em manicures, tatuagens e outros procedimentos associados à saúde, beleza e cuidados estéticos. Isso favoreceu uma grande transmissão da hepatite C no Acre num passado recente”, acrescentou.

Há cinco tipos de hepatite descritos pela literatura médica: A, B, C, D (Delta) e E.

Thor explicou ainda que a região amazônica tem registrado um alto índice de hepatite B e é o único lugar do Brasil onde a hepatite Delta — o tipo mais grave da doença — se manifesta.

“De fato, o Acre é o estado com a maior prevalência conhecida de hepatite C. A isso se somam outras duas hepatites virais crônicas: a B e a Delta. A B é muito comum em diversos lugares do mundo e do Brasil. Na região amazônica, há muitos casos. Somos uma região já conhecida por ter alta incidência de hepatite B. E a hepatite Delta é uma doença que só existe aqui — uma hepatite exclusiva, digamos assim, da região amazônica. Não existe fora do Brasil, nem fora da Amazônia. E é muito mais comum na Amazônia Ocidental: em Rondônia, no Acre e no oeste do Amazonas — Pauini, Heroteté, Boca do Acre. Essa região onde estamos é a que mais concentra casos de hepatite Delta na Amazônia, e a Amazônia concentra todos os casos de hepatite Delta do Brasil. Temos uma conjunção dessas três hepatites, cada uma com uma causa distinta”, destacou.

A hepatite D, também chamada Delta, é causada pelo vírus HDV. Esse vírus depende da presença da infecção pelo vírus HBV (hepatite B) para infectar o indivíduo. Existem duas formas de infecção pelo HDV: coinfecção simultânea com o HBV e superinfecção do HDV em pessoas com infecção crônica pelo HBV.

A coinfecção HBV-HDV é considerada a forma mais grave de hepatite viral, associada a uma maior ocorrência de cirrose, mesmo dentro de dois anos após a infecção, além do aumento da probabilidade de evolução para descompensação, carcinoma hepatocelular e morte.

Hepatite é uma doença que afeta o funcionamento do fígado — Foto: Divulgação

Dantas explicou como se dá a transmissão de cada tipo de hepatite e destacou que a Delta tem maior prevalência no meio rural, entre indígenas e ribeirinhos:

“A hepatite C é transmitida por seringas. A hepatite B e a Delta têm transmissão mais familiar, dentro das casas. As pessoas adquirem na infância, ao nascer, pegando dos irmãos, da mãe. A Delta é mais comum na área rural, entre ribeirinhos e povos indígenas da Amazônia. Por uma conjunção de fatores, acabamos tendo muitos casos de hepatite B, C e Delta — as três hepatites que levam à cirrose e ao câncer de fígado”, salientou.

O médico explicou que o alto número de casos de hepatites crônicas justifica a elevada quantidade de casos de cirrose e câncer de fígado no estado.

“Existem ainda as hepatites A e E, mas essas são transmitidas por via oral, por alimentos contaminados, e não levam à cirrose ou ao câncer de fígado. Elas causam apenas hepatite aguda. As hepatites crônicas, que mais nos preocupam, explicam por que o Acre tem tanta cirrose e tanto câncer de fígado. Quando consultamos os dados do Instituto Nacional de Câncer, que mapeia os tipos de câncer em todo o Brasil, vemos que nós, aqui no oeste do Amazonas, somos os campeões em câncer de fígado — exatamente por causa das hepatites virais. Isso faz da nossa região um ponto quente do mundo. Eles chamam de hotspot um lugar onde o problema das hepatites é muito grave”, pontuou.

A transmissão das hepatites por relação sexual, especialmente a do tipo B, também é uma questão preocupante no cenário amazônico, segundo o infectologista.

“Das três hepatites, a B é altamente transmissível por via sexual. É a mais transmissível de todas. Na verdade, é mais transmissível por via sexual do que o próprio HIV. Por isso, sim, devemos considerar as hepatites virais também como ISTs, especialmente a hepatite B”, comentou.

Imunização

A imunização, de acordo com o médico, é uma excelente aliada no combate à hepatite B, mas a cobertura vacinal no Acre ainda é baixa.

“Uma característica diferente dessas três hepatites é a disponibilidade de vacina. A hepatite B tem vacina, mas a C e a Delta não. A hepatite B deveria ser uma doença eliminável se mantivéssemos uma alta taxa de cobertura vacinal. As pessoas precisam se vacinar para se livrar da hepatite B como doença sexualmente transmissível. Mas, sim, quem chega à adolescência sem ter sido vacinado na infância acaba se infectando com a hepatite B”, afirmou.

Thor trouxe uma informação importante: a vacinação contra a hepatite B deve ser feita ao nascer, “na primeira hora de vida”.

Percentual de bebês vacinados contra hepatite B é um dos menores da história — Ministério da Saúde

Percentual de bebês vacinados contra hepatite B é um dos menores da história/Foto: Reprodução

“A vacina da hepatite B deve ser aplicada em todos os recém-nascidos. E um aspecto crucial é que ela deve ser administrada na primeira hora de vida. Essa é a vacina mais importante ao nascer. Se o bebê sai da maternidade sem essa dose, corre o risco de se infectar no primeiro mês de vida, ao ter contato com a família. Como a hepatite B é muito transmitida dentro de casa, o dado mais importante de cobertura vacinal não é apenas ter as três doses na caderneta, mas garantir a aplicação da primeira dose ainda na maternidade. Essa é a dose mais importante da vida. Caso a criança entre em contato com o vírus antes de ser vacinada, a vacina já não surtirá efeito e ela levará a infecção para o resto da vida. Por isso, além da vacinação, é fundamental o diagnóstico durante o pré-natal para evitar a transmissão da mãe para o bebê. São as duas estratégias principais: vacina na primeira hora de vida e diagnóstico na gestante”, explicou.

Para a hepatite C, a estratégia é diferente: “Não há vacina. O ideal é fazer busca ativa em todos os que têm mais de 40 anos. Todos com mais de 40 anos no Acre deveriam fazer exame para hepatite C”, orientou.

Diagnóstico

“Geralmente, o diagnóstico é feito de forma tardia, por uma característica própria das hepatites. No mundo todo é assim, pois elas não causam sintomas. A pessoa pode estar evoluindo para cirrose ou câncer de fígado sem sentir nada durante anos. Quando os sintomas aparecem, o quadro já está avançado. Por isso o diagnóstico tende a ser tardio. Quem nasce em uma região de alta prevalência, como o Acre, deveria fazer testagem de hepatite pelo menos uma vez na vida”, defendeu.

O médico explicou como a testagem é feita:

“Hoje, o teste rápido pode ser feito com uma picada no dedo, em qualquer posto de saúde, inclusive no Acre. É possível descobrir na hora. Muitas pessoas descobrem quando vão fazer exames de rotina, como para concursos públicos ou check-up clínico. O médico vê alterações nos exames de fígado e pede a testagem para hepatites. Mas, se a pessoa não buscar esse diagnóstico ativamente, pode passar a vida inteira sem saber e desenvolver complicações graves. Por isso o Acre também realiza transplantes de fígado, devido à alta demanda de pacientes com cirrose e câncer hepático.”

Geralmente, o diagnóstico é feito de forma tardia, por uma característica própria das hepatites, disse o médico/Foto: Reprodução

Thor afirmou que a descoberta precoce da doença colabora para a qualidade de vida do paciente:

“Se a pessoa descobre a hepatite cedo, numa busca ativa, mesmo sem sentir nada, é possível ter qualidade de vida. É importante fazer o exame mesmo que não se considere em risco. Pode-se contrair hepatite em consultório odontológico, farmácia, manicure ou em casa, por contato com familiares. Ao descobrir cedo, antes da cirrose, é possível tratar, curar e evitar complicações futuras. Essa é a medida mais eficaz: identificar cedo quem tem hepatite para tratá-los antes que adoeçam gravemente.”

A busca ativa como estratégia

Para as hepatites que não são prevenidas com vacina, Thor defende que a busca ativa deve ser política pública prioritária no Acre:

“Todo paciente com qualquer doença crônica — diabetes, hipertensão, tireoide, colesterol alto — deveria ser testado para hepatite C na atenção básica. Fazendo essa busca ativa, rastreando a população, vamos descobrir quem tem hepatite C, tratar e curar essas pessoas. Hepatite C não tem vacina, então a estratégia é essa: busca ativa e tratamento precoce. Cada hepatite tem uma estratégia diferente. B, C e Delta são doenças distintas, com epidemiologia, formas de transmissão e tratamento próprios. Precisamos de um plano estadual de eliminação da hepatite C.”

O médico acredita que o Acre pode deixar de liderar os casos da doença para se tornar referência no combate às hepatites virais:

“O que tenho dito a todos, inclusive aos gestores da Secretaria de Saúde, é que podemos transformar nosso problema em exemplo. Estivemos há pouco tempo na cúpula global de hepatites, em Los Angeles, com representantes do mundo todo. Vimos o exemplo do Egito, que já foi o país com mais hepatite C no mundo e hoje é referência na eliminação. O Acre pode seguir esse caminho. Temos cinco anos para alcançar a meta global de eliminação da hepatite C até 2030. Para isso, precisamos de um plano estadual bem articulado com os municípios, que terão metas próprias dentro da atenção primária”, pontuou.

Acre tem maior número de casos de hepatite C no Brasil/Foto: Reprodução

Hepatite Delta, a mais grave

Como a região amazônica é a única do Brasil a registrar casos de hepatite Delta, Thor alerta que é preciso levar o tratamento até quem vive em locais isolados. O tratamento da doença é mais rigoroso e invasivo.

“A hepatite Delta é a mais grave e desafiadora. Está presente na área rural, entre ribeirinhos e indígenas da Amazônia. O diagnóstico é difícil, e o tratamento ainda é feito com o velho interferon — injeções semanais com muitos efeitos colaterais, que precisam ser armazenadas em geladeira. É um desafio logístico e científico enorme tratar essas pessoas. Já existem medicamentos melhores no mundo, e precisamos lutar pela incorporação deles no SUS.”

“A Europa já utiliza esses novos medicamentos, e precisamos incorporá-los ao nosso sistema de saúde. Temos que montar estratégias para, junto com o programa Saúde Itinerante e os programas de saúde indígena, como o CASAI, realizar o diagnóstico e garantir o tratamento adequado para essas populações. Hepatite C pode ser eliminada. Hepatite B e Delta, controladas. Eliminação e controle andam juntos — e o Acre pode dar o exemplo”, finalizou.